Um instante de Irã, por Cláudia Mesquita

A vinda (cancelada) do Ahmadinejad ao Brasil tocou fogo na Internet. O que tinha de gente pelos blogs falando contra e a favor a vinda do homem não era brincadeira (leia aqui os textos do Sergio Leo, do Idelber Avelar e do Pedro Doria, os comentários são bem instrutivos também).

Apesar de sempre ter achado o regime iraniano muito conservador e restritivo, eu tinha pouca informação de como as coisas se davam por lá.

Tudo que eu sabia vinha da péssima cobertura internacional do Brasil, dos quadrinhos da Marjane Satrapi e do cinema iraniano. Mesmo assim, nos anos 90, pouca coisa me chamou tanta atenção quanto os filmes do Abbas Kiarostami. A coisa é de uma riqueza absurda e é tudo emocionante. Os filmes de Mohsen Makhmalbaf também.

Eu acredito que parte desse fascínio que os dois diretores exercem na minha cabeça tem a ver com a maneira em que o cinema deles é puro desnudamento da realidade. A Cláudia Mesquita, que é minha grande amiga, tia e uma das pessoas que eu mais amo nesse mundo, escreveu um texto sobre Um Instante de Inocência, filme do Makhmalbaf emblemático sobre essa discussão do que se tornou o Irã pós-revolução islâmica. Muito por que ela passa ao longo das discussões políticas para tratar o que nesse momento histórico mexeu com a vida das pessoas. O texto foi escrito em 1997, mas continua muito atual. Feito como um trabalho para a universidade, ele tem como principal referência o texto de Mateus Araújo sobre os filmes anteriores de Makhmalbaf, Salve o Cinema e Gabbeh (“Dois filmes iranianos”). Vale muito a pena lê-lo.

 

Um instante de inocência: realismo e auto-reflexividade

Cláudia C. Mesquita /Trabalho apresentado à disciplina “Realismo no cinema” (Prof. Lúcia Nagib, Unicamp/1997).

 

“Não é esta uma sólida definição do realismo em arte: obrigar o espírito a tomar partido sem trapacear com os seres e as coisas? [1]

Cena do filme de Makhmalbaf
Cena do filme de Makhmalbaf

1) Neste ensaio, proponho abordar Um Instante de Inocência (1996), último filme de Mohsen Makhmalbaf exibido no Brasil. Tentarei analisar a maneira original como o filme articula certa busca de realismo no cinema com estratégias que desmascaram as convenções ilusionistas (estratégias conhecidas como “antiilusionistas”), engendrando uma espécie de “realismo dialético” que, guardadas as diferenças de meio artístico, ideologia e contexto, remete à visão que Brecht tinha do conceito – e que, programaticamente, reivindicava para sua própria obra teatral, sobretudo como encenador [2].

Como Mateus Araújo já notou (retomo nessa introdução, em linhas gerais, os seus argumentos), a estratégia dos filmes iranianos recentes combina, não raro, estilo realista de registro – muitas vezes semelhante ao documental[3] – a procedimentos antiilusionistas variados. Freqüentemente comparado ao neo-realismo italiano (pela aproximação a temáticas e circunstâncias reais, o trabalho com atores não profissionais em locações etc.), o cinema iraniano herda também procedimentos da Nouvelle Vague francesa e dos chamados cinemas novos, trabalhando uma consciência do próprio cinema herdada da tradição moderna. Lembremos do prólogo de Através das Oliveiras, em que o ator se apresenta, olhando para a câmera e dizendo: “Eu sou o ator que vai fazer o papel do diretor”.

Tal consciência aparece na forma de enredos meta-cinematográficos. Nesses filmes, a “realidade iraniana” não é um dado ou um pressuposto, mas algo que vai sendo descoberto aos poucos, como parte do processo mesmo de “filmagem” ou de preparação para a filmagem – ou ainda, no caso de E a vida continua, filme de Kiarostami, no processo de revisita a uma região rural do Irã, recém-abalada por um terremoto, por um diretor de cinema em busca de atores que trabalharam em um filme seu rodado na região. Assim, não se trata de filmes “sobre”[4] determinados episódios, mas de filmes que abordam a relação do cinema com tais episódios e realidades.

Como lemos na hipótese de Mateus Araújo sobre Salve o Cinema e Gabbeh, tais filmes iranianos fazem da equação cinema/vida uma reflexão constante[5]. Qual, senão esta, é a problemática privilegiada por Makhmalbaf nos seus longas Salve o Cinema (1995) e Um Instante de Inocência? O projeto deste último não é outro: Makhmalbaf propõe a revisita, pelo cinema, de um episódio vivido, não para repeti-lo, mas para equacioná-lo no presente. Tentarei detalhar esses pontos à frente, na análise mais detida de Um Instante de Inocência.

2) “Quero recuperar a juventude com uma câmera”, diz o cineasta Mohsen Makhmalbaf, explicando o projeto do filme a um jovem ator, escolhido para interpretá-lo quando jovem. Um Instante de Inocência é, como Através das Oliveiras (1994), a representação de uma filmagem. Mas, diferente do filme de Abbas Kiarostami, em que temos um ator interpretando o diretor, é Makhmalbaf quem faz, aqui, o seu próprio papel, como já fizera em seu longa anterior, Salve o Cinema (1995).

Como se sabe, Um Instante de Inocência tem como motivo o processo de recriação, para o cinema, de um episódio decisivo na juventude de Makhmalbaf: o dia em que, aos 17 anos, ajudado por uma prima, ele apunhalou um policial, com a intenção de roubar sua arma e assaltar um banco. O jovem policial obedecia ao regime militarizado do Shah Rheza Pahlevi e Makhmalbaf era um ativista islâmico, disposto a desestabilizá-lo. A empreitada fracassou (Makhmalbaf acabou preso e o policial abandonou a farda), mas o episódio em si e suas conseqüências não são apresentadas no filme como fatos reencenados, e sim como reflexões, sentimentos e rememorações de seus protagonistas, 20 anos depois. O episódio é passado, mas as reflexões sobre ele são atuais e, conseqüentemente, incidem sobre a representação do episódio hoje, quando o país apresenta-se bem diverso do passado relativamente recente a que o filme alude[6].

Guardemos este dado: nada neste filme de aparência documental repercute a expectativa habitual que temos em relação aos “filmes históricos”. Em primeiro lugar, representa-se um episódio “menor”, provavelmente corriqueiro no contexto pré-Revolução islâmica. Não há reconstituição de época; uma farda usada pelo jovem que fará o papel de policial é o único vestígio material que remete ao passado. O que parece importar não é a repetição em detalhes da maneira exata como o episódio aconteceu, mas o equacionamento do conflito no presente – estabelecendo um diálogo com o momento atual e refletindo assim sobre a capacidade do cinema de representar a vida presente.

Para recriar o episódio do confronto com o policial, Makhmalbaf conta com uma presença vital, cujo rosto já conhecíamos dos testes de Salve o Cinema. Ele é Mirhadi Tayebi, o policial apunhalado pelo diretor, interessado, desde Salve o Cinema, em se tornar um ator. Numa conversa com o policial e seu jovem intérprete, a estrutura narrativa mais geral de Um Instante de Inocência é antecipada por Zinal, assistente de Makhmalbaf que também conhecemos de Salve o Cinema: escolhidos os atores que os representarão quando jovens, cabe a Makhmalbaf e Tayebi, separadamente, “dirigirem” seus intérpretes até o momento da “punhalada” – cena decisiva, marcada para alguns dias depois, num bazar, onde as duplas se reencontrariam, com a presença da câmera.

Makhmalbaf e o “jovem Makhmalbaf”, o policial e o “jovem policial” partem, assim, em duplas, para os “ensaios”, que correspondem a aproximadamente dois terços do filme. Vamos repetir, com outras palavras, aquela hipótese: não são os fatos reencenados, mas o processo de encenação, como evento que pode iluminar o tempo presente, o que interessa a Makhmalbaf. Feito este breve resumo, passemos a algumas características que creio definirem bem o elenco de escolhas deste filme.

3) Como em Salve o Cinema e nos filmes recentes de Abbas Kiarostami (não me refiro aqui a Gosto de Cereja /1997), o estilo realista da representação convive, em Um Instante de Inocência, com a reflexão sobre a própria representação e o ato de filmar. Não há gratuidade na opção do diretor. A auto-reflexividade não é um adereço, mas o terreno sobre o qual Um Instante de Inocência se constrói: trata-se de um filme sobre a realização de um filme e, se isso não bastasse, o diretor desempenha seu próprio papel, numa encenação que tem também uma dimensão autobiográfica – diz respeito ao presente de Makhmalbaf como cineasta e a seu passado como ativista político.

Um Instante de Inocência começa com um prólogo que nos mostra Mirhadi Tayebi, o ex-policial, caminhando ao longo de uma linha de trem, em direção à câmera – no decorrer desta cena, são inseridos os créditos. Após o prólogo, vemos Tayebi se aproximar da paisagem ampla de uma cidade, onde vemos a imagem de uma mesquita em destaque – essa imagem reincidirá em diferentes períodos do dia, ganhando, acredito, conotação simbólica.

Na cena seguinte, vemos Tayebi procurar por Makhmalbaf em sua casa: lá, ele dialoga com a filha do diretor e deixa seu endereço para posterior contato. Este prólogo nos informa que é a vontade daquele homem, Tayebi, que funda o processo cinematográfico que veremos a seguir (“Se você é um policial, por que quer se tornar um ator?”, pergunta a garotinha. “Tenho minhas razões”, responde Tayebi). E ainda: vindo do interior do país, ele busca pelo cinema em Teerã, uma cidade grande apresentada sumariamente pela paisagem cinzenta em que se destaca a imagem de um templo religioso islâmico, símbolo da vida presente.

Um corte e estamos num teste de atores semelhante ao de Salve o Cinema, onde – saberemos mais tarde – Makhmalbaf escolhe o ator que o interpretará quando jovem, justamente para o filme que desenvolverá com o ex-policial Tayebi. Os diversos candidatos são enquadrados frontalmente, em diálogo com uma voz off que supomos ser a do diretor, cujo contracampo só nos é oferecido ao final da sequência de testes. Ainda como em Salve o Cinema, como notou Mateus Araujo, no teste os candidatos acabam falando de si mesmos, de suas histórias pessoais e temperamentos – bem de acordo com o que supomos ter sido a atitude de Makhmalbaf/personagem frente ao desejo de Tayebi de se tornar ator: “Pois vamos representar nossas vidas”.

Em seguida, é a vez de Tayebi escolher o seu intérprete. Diferente de Makhmalbaf, o ex-policial escolhe o candidato exclusivamente pela aparência física, atributo que, para Tayebi, parece garantir que será “melhor representado” – “ele se parece muito comigo”, diz, referindo-se ao candidato mais bonito do grupo. A rejeição de Makhmalbaf a sua escolha provoca a irritação do ex-policial que, a princípio, insiste em fazer ele mesmo o seu próprio papel, apelo que também não será considerado. Mais tarde, ao longo do processo de direção de seu jovem intérprete (escolhido por Makhmalbaf, não por ele), Tayebi revelará seu projeto para e com o cinema: galgar alguma posição e projeção social, com o objetivo de conquistar o amor de uma mulher, oportunidades que acredita ter perdido, em função da punhalada que Makhmalbaf lhe desferiu na juventude. Em resumo, Tayebi espera encontrar, através do filme, um “lugar” melhor na sociedade – algo que, na sua imaginação, Makhmalbaf lhe deve.

Mas Makhmalbaf/personagem não realiza o desejo de Tayebi – no filme cuja feitura assistimos, Tayebi só tem um papel atrás da câmera, dirigindo seu jovem intérprete. Ali, não será, para usar os termos de que gosta, “mocinho” nem “bandido”. Embora tenha seu papel no filme “ele mesmo” (Um Instante de Inocência), o ex-policial tampouco verá seu desejo como personagem cumprido: o processo engendrado pelo cinema, em vez de lhe devolver a imagem desejada, devolve-lhe uma imagem mais verdadeira (ou, poderíamos dizer, mais realista) de si mesmo, ao provocar a consciência de que a mulher desconhecida com quem sonhou platonicamente durante vários anos é a prima de Makhmalbaf, cúmplice dele no atentado ao mesmo policial. Pela negação dos desejos de Tayebi e pela relação de liberdade um tanto vigiada que Makhmalbaf lhe impõe, poderíamos supor, neste filme, a tirania da arte (do cinema) sobre a vida. Não é, acredito, até onde Um Instante de Inocência nos conduzirá.

4) Para um filme de tom realista e mesmo documental, Um Instante de Inocência surpreende sobretudo como construção de roteiro. Promovendo cruzamentos entre os dois processos que o compõem – Makhmalbaf dirigindo “o jovem Makhmalbaf”, o policial dirigindo “o jovem policial” –, o filme brinca com a linearidade narrativa, operando repetições e apresentando eventos antes de apresentar suas causas e antecedentes: eventos cujo sentido na narrativa, aparentemente limitado, só será totalmente compreendido mais tarde, quando da sua repetição no interior do outro processo que integra o filme. Como exemplo, lembremos da sequência em que somos apresentados à moça que – mais tarde saberemos – representará a “jovem prima de Makhmalbaf”. Enquanto o policial e o “jovem policial” ensaiam num bazar, ela passa e pergunta as horas (processo 1: o policial dirigindo o “jovem policial”). A riqueza do evento só será compreendida mais tarde: a moça vinha de um encontro com Makhmalbaf e o “jovem Makhmalbaf” (processo 2: Makhmalbaf dirigindo o “jovem Makhmalbaf”). Distrair o policial, perguntando as horas, é justamente o papel que a moça terá no cinema (já que fará o papel da “jovem prima”) e que, sem saber, antecipou na “vida”.

Rompendo mais profundamente com o esquema narrativo clássico, Um Instante de Inocência vai além: incorpora elementos alheios à diegese[7], em benefício de uma maior consciência, por parte do espectador, da representação e de seus artifícios[8]. Tal procedimento, que mencionarei a seguir, tem parentesco com aquele, já referido, de Através das Oliveiras: “Eu sou o ator que vai fazer o papel do diretor”. Aparentemente “anti-realistas”, os expedientes que combatem o ilusionismo devem, a meu ver, ser vistos em outra perspectiva, realista até: mostram que mesmo o processo de realização retratado (com aparência documental e, às vezes, o estilo sóbrio de um simples “making of”) é construção de discurso, e o que importa não é nos identificarmos com os personagens, mas observar suas questões e performances com distanciamento.

A primeira imagem de Um Instante de Inocência é a de uma claquete sendo batida – nela está escrito o título do filme, “lido” (narrado em over) por uma voz não identificada. A segunda imagem mostra, em close, um vaso de flor e um pão, iluminados de maneira anti-realista, imagem cujo valor simbólico será compreendido ao longo do filme. A claquete e a voz over reincidem, anunciando o nome do diretor. Elas voltam ao longo de toda a seqüência inicial, apresentando os créditos. Ao longo do filme, reincide a claquete, “desnaturalizando” a narrativa: ela traz indicações sumárias resumindo o que o filme acaba de nos mostrar (“o jovem Makhmalbaf foi escolhido”), o que foi elipsado (“o tema foi escolhido”) ou o que ainda vai ser mostrado (“à procura do jovem policial”), num procedimento que faz lembrar as indicações brechtianas sobre o anúncio, em cena, dos títulos contidos em seus textos[9] .

Outro curioso episódio antiilusionista refere-se ao uso do som. Refiro-me à cena em que Tayebi, o ex-policial, ensina seu jovem intérprete a marchar conforme manda o figurino militar. Depois de algumas lições, os dois saem marchando pela neve. Na banda sonora, incide a música, uma marcha militarizada que claramente não integra a diegese, mas a comenta de fora, ironicamente, como que endossando o projeto de filme de Tayebi. A continuidade ortodoxa – ou a obediência às “convenções do realismo dramático”[10] – é novamente combatida através do som, num episódio de notória contradição entre o plano visual e o sonoro. Vemos Zinal correndo atrás de Tayebi na neve, num plano geral bem aberto. O diálogo entre eles, no entanto, é ouvido em “close”, como se estivessem em primeiríssimo plano, procedimento adotado com frequência por Kiarostami.

Outro episódio semelhante, mais radical do que os demais, é aquele em que, sem aviso prévio, os atores que interpretam o “jovem Makhmalbaf” e a jovem prima do diretor incorporam papéis diferentes daqueles que lhes pertenciam originalmente. Refiro-me à cena em que Makhmalbaf visita sua prima para lhe pedir autorização para que a filha dela participe do “filme”. Subitamente, enquanto serve chá ao “jovem Makhmalbaf”, a filha da prima e o rapaz – que nunca tinham se visto – se transformam, tornando-se (através do diálogo) os personagens que possivelmente representariam. Nesta sequência meta-cinematográfica, Makhmalbaf  expõe a “realidade do cinema” com rara eloquência[11], ao mesmo tempo em que parece afirmar: assim como os atores no cinema, as pessoas representam papéis na vida social, e esses papéis são localizados e históricos (empresto o argumento de Mateus Araújo, que reflete sobre esta analogia entre ator de cinema e ator social em sua análise de Salve o Cinema).

As cenas de repetição a que aludi anteriormente são também matéria antiilusionista. Embora aconteça cada uma no interior de processos distintos (Makhmalbaf dirigindo “o jovem Makhmalbaf”; o policial dirigindo “o jovem policial”), elas deveriam ser, em tese, rigorosamente a mesma cena. Mas, pelo que vemos na tela, as repetições não são idênticas às aparições originais. Há pequenas diferenças que provam sua reconstrução e seu caráter fictício – quando o “jovem policial” procura pelo vaso de flor que deixou no bazar, o diálogo com o senhor que ele encontra no caminho (“você viu um raio de sol por aqui?”) apresenta ligeiras modificações. Mais uma vez, Um Instante de Inocência contamina um estilo de aparência documental com uma série de indicações sobre a construção do seu discurso.

Antes que as duplas se reencontrem para o momento da filmagem, pelo que o filme nos mostra, enquanto Tayebi está preocupado em ensinar a seu jovem intérprete o jeito exato como marchava ou batia continência, Makhmalbaf se ocupa de juntar pistas sobre a vida de seu intérprete, e também de fornecer-lhe informações sobre seu próprio passado, numa notável seqüência no interior de um carro em movimento pelas ruas de Teerã – nela, apenas o “jovem Makhmalbaf” é enquadrado, enquanto seu interlocutor é mantido em off, embora ocupe a poltrona ao lado. Nesta sequência, novas afinidades são descobertas entre eles, mas apenas o personagem “do presente” (o “jovem Makhmalbaf”) é oferecido ao nosso olhar. Paradoxalmente, o diretor “naturalista” (Tayebi), talvez por sua inocência do processo cinematográfico e por se encontrar numa relação desigual de poder com Makhmalbaf, conduz uma direção mais “em processo” do que a do diretor “moderno” (Makhmalbaf), que, como um bom autor, detém as rédeas do “reencontro” desde o seu começo.

5) Tanto o “moderno” quanto o “naturalista”, cada um a seu modo, verão seus intérpretes tomarem atitudes próprias frente aos papéis que irão representar. Tanto a rebeldia do “jovem Makhmalbaf”, em sua crise no momento de encenar a “punhalada” (“não é preciso apunhalar ninguém para salvar a humanidade!”, diz, em prantos), quanto a do “jovem policial” (oferecendo a flor à moça na cena final do filme[12]) indicam a liberdade conquistada pelos intérpretes no processo mesmo de feitura do filme – e, podemos aferir, as transformações vivenciadas pelo cidadão iraniano após 20 anos de história[13]. Será possível maior relação de distanciamento entre o ator e seu papel? E ainda: se o “jovem Makhmalbaf” e “o jovem policial” se distanciam dos papéis que lhes cumpre executar, que dizer do espectador? Não há relação de identificação possível neste filme e creio que valem aqui as palavras de Robert Stam, em texto já referido sobre Terra em Transe: “(…) Em vez de envolver o espectador, o filme o transforma num observador crítico dos personagens (…) o filme faz do homem nas suas transformações um objeto de estudo”.

Como em Salve o Cinema, como escreveu Mateus Araújo, Makhmalbaf afirma o poder do cinema, “para celebrar, porém, sua subordinação à vida”, aqui talvez em nível mais manifesto – não é o argumento dos diretores, mas sim os intérpretes que decidem o destino do filme cuja feitura Um Instante de Inocência retrata, baseados em sua experiência e sua posição frente ao presente. O congelamento da cena final torna enfática a idéia de que os intérpretes (a vida) foram os responsáveis pelo destino do filme (o cinema).

Toda esta reflexão arte/vida, presente/passado detonada pelo “processo” de realização que o filme retrata é permeada, em Um Instante de Inocência, pelo desejo de refletir o cotidiano do homem comum iraniano – e, acredito, não estaremos forçando a barra se apostarmos que, ao mostrar que o filme é construído, mudável e inserido em seu tempo, Makhmalbaf parece afirmar o mesmo sobre a vida social de seu país. Ao falar do cinema, ele fala alegoricamente da vida; falar diretamente sobre ela seria temerário num país de censura dura[14]. Sobre esta questão, há muitas pistas – mais ou menos sutis – ao longo do filme. Citarei duas que considero notáveis. A primeira diz respeito à situação presente da mulher no Irã. Logo na primeira sequência, temos um dado: Tayebi, o ex-policial, bate à porta de uma casa, e a mulher que o atende não mostra o rosto, usando um véu preto como anteparo protetor. Mais à frente, quando Tayebi e o “jovem policial” vão à procura de comida, o mesmo acontece: a mulher que os atende conversa com eles através de um portão e não se deixa observar. Mas a melhor pista diz respeito à prima de Makhmalbaf que, cúmplice dele no passado, não permite que, no presente, sua filha participe do filme como intérprete da própria mãe.

No campo do cinema, temos um interessante diálogo na alfaiataria onde Tayebi e o “jovem policial” compram um uniforme de policial como “os dos tempos do Shah”. Ao ser informado de que o uniforme será usado num filme, o velho alfaiate desfia suas lembranças cinematográficas – John Ford (“o homem dos 4 Oscars!”), Kirk Douglas (“estava bem demais em ‘Os Vikings’”), Sophia Loren, Anthony Quinn, John Wayne (“o Conquistador”) -, todas referentes ao tempo em que o cinema norte-americano era extremamente popular no país. Suas informações sobre os astros, desatualizadas e anacrônicas, revelam longa ausência de tais ícones do star-system nas telas do Irã, ao mesmo tempo em que compõem um quadro revelador do presente iraniano, uma vez que contraposto, inevitavelmente, ao esquema que estamos vendo em Makhmalbaf: pessoas comuns no lugar de estrelas, heróis desmistificados, produção artesanal.

Um belo emblema da proposta de Um Instante de Inocência é a cena em que, à espera da “equipe de Makhmalbaf” no bazar, o “jovem policial” não resiste e resolve abandonar o set para se unir a seus companheiros (Tayebi e Zinal), que partiram espontaneamente junto a um cortejo fúnebre desconhecido, cantando e ajudando a carregar o caixão. Adiado fica o cinema em função da vida – ao abandonar o set, o “jovem policial” perde seu vaso de flores; sai correndo em busca do vaso e, quando a “equipe de Makhmalbaf” aparece, não há ninguém à espera. Uma das razões do interesse de Um Instante de Inocência – bem como de outros filmes iranianos, como nos mostra a análise de Mateus Araújo em que aqui nos baseamos  – talvez seja esta: embora discutam, através de uma auto-reflexividade pressuposta, a capacidade do cinema de representar a experiência vivida, estes filmes o fazem para afirmá-la, desde que subordinado e tensionada pelo incontrolável da vida.

O compromisso do cinema com o tempo presente garante a beleza de Um Instante de Inocência – e aí reside, parece dizer Makhmalbaf/diretor, a sua legitimidade. Acho que podemos chamar tal compromisso de busca de realismo, se atribuirmos um sentido também dialético ao termo; um realismo de natureza semelhante à que Brecht reivindicava para sua obra – e aqui o “sem trapacear com os seres e as coisas”, de Bazin, usado na epígrafe deste texto, ganha um sentido renovado, ainda ausente dos filmes neo-realistas a que o crítico francês se referia: um antiilusionismo didático e sem inocência, que transforma o espectador em cúmplice consciente da construção do discurso cinematográfico, ainda à Brecht: “Iluminador, um pouco mais de luz sobre o palco. Queremos os espectadores despertos e atentos”[15].

Bibliografia

Bazin, André. O Cinema – ensaios.

Bernardet, Jean-Claude. “Mar de Rosa ou os filmes sobre”. In: Piranha no Mar de Rosas.

Brecht, Bertolt. La Compra del Bronce.

___________. “O Popular e o Realista” . In: Teatro Dialético. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1967.

Delage, Christian. “L’Iran”. In: Revoltes Revolutions Cinema. Paris: Éditions du Centre Georges Pompidou, 1989.

Dort, Bernard. O Teatro e Sua Realidade. Perspectiva.

Silva, Mateus Araújo. “Arte e Vida em Dois Filmes Iranianos Recentes de Mohsen Makhmalbaf”. In: Suplemento, fevereiro de 1998.

Stam, Robert. O Espetáculo Interrompido – Literatura e Cinema de Desmistificação. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1981

___________. “Terra em Transe”. In: Discurso. São Paulo: FFLCH/USP, Ano VII, n°7, 1976, p. 169-181

Xavier, Ismail. O Discurso Cinematográfico: A Opacidade e A Transparência. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977.


[1] Bazin, André. In: “Alemanha Ano Zero”,  Esprit/1949.

[2] “Realismo não é só uma questão de forma. Ao copiarmos os métodos desses realistas [ele se referia a Balzac e Tolstói], sem uma revisão total, nós próprios deixaremos de ser realistas”.  O trecho citado integra o texto “O Popular e o Realista”, publicado originalmente em 1937, pela revista Das Wort, como contribuição de Brecht a sua famosa polêmica com Georg Lukács. Brecht solicitava um conceito dinâmico e mudável de “realismo”: “Nossa concepção de realismo deve ser larga e política, livre das restrições estéticas e independente da convenção”. (In: Teatro Dialético. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1967).  Para o crítico francês Bernard Dort, o “realismo brechtiano” (ou “realismo épico” ou “realismo dialético”) deve ser definido, “ao contrário do naturalismo”, como “uma vontade de evocar uma sociedade que transforma o homem mas que também pode ser transformada por ele” (In: O Teatro e Sua Realidade).

[3] Mateus Araújo destaca o “realismo e a sobriedade” como características dos filmes de Kiarostami e Panahi, assim como de Salve o cinema e Um instante de inocência, indicando também a “tendência de auto-reflexividade e mescla de documentário e ficção” como marcas do cinema de Kiarostami e Makhmalbaf nos anos 90.

[4] Em artigo sobre Mar de Rosas (Ana Carolina), Jean-Claude Bernardet levanta com muita lucidez a idéia de “cinema sobre”, a que opõe o conceito de “cinema duvidoso” ou “cinema que duvida” (“Mar de Rosas ou os filmes sobre”. In: Piranha em Mar de Rosas.)

[5] Este antigo problema, central no debate sobre “realismo”, é privilegiado por Mateus Araújo em seu artigo “Dois filmes iranianos” (Suplemento, Belo Horizonte, fevereiro de 1998), publicação do texto “Arte e vida em dois filmes iranianos recentes de Mohsen Makhmalbaf”. Este texto deve muito ao de Mateus, como já se pôde notar. Retomo e prolongo alguns de seus argumentos e hipóteses, ao analisar Um instante de inocência. Agradeço a Mateus pela amizade e a partilha, e a Tiago Mesquita pela leitura.

[6] Refiro-me à revolução islâmica que, culminando uma série de intensas manifestações anti-governamentais, derrubou em  fevereiro de 1979 a monarquia dos Pahlevi, que governou o país por mais de 50 anos, instaurando o estado teocrático. Na ocasião, Makhmalbaf foi solto, após quatro anos na prisão. A revolução islâmica “marca uma ruptura radical na história moderna da Pérsia. Essa ruptura, se altera profundamente a natureza do regime de governo, se inscreve, para os religiosos, num contexto teleológico fundado na inelutabilidade – depois de um período de dependência do estrangeiro considerado como um desvio – do despertar de valores de coesão e cerceamento do Islã”. (Christian Delage, “L’ Iran”).

[7] “Diegético = tudo que diz respeito ao mundo representado”, conforme definição de Ismail Xavier (In: O Discurso Cinematográfico: a Opacidade e a Transparência. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977).

[8] Acredito que podemos, basicamente, classificar os procedimentos antiilusionistas adotados por Makhmalbaf de “didáticos”, conforme a definição de Robert Stam em O Espetáculo Interrompido – Literatura e Cinema de Desmistificação (Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1981). Makhmalbaf explicita a construção do discurso cinematográfico, como que dizendo: assim como o filme, os mecanismos que regem a vida dos homens são concretos, mudáveis, inseridos no tempo. As atitudes de seus jovens intérpretes parecem comprovar essa idéia.

[9] O anúncio verbal ou a utilização de cartazes destinados a anunciar a ação e indicar seu lugar e momento são algumas das técnicas de “distanciamento” adotadas por Brecht – o espectador é, assim, “levado a reconhecer o caráter passageiro, temporário, da natureza que é representada para ele, e a considerá-la como um certo estado histórico do mundo e dos homens” (Dort, Ibidem, p. 296).

[10] A expressão é de Robert Stam, em valioso artigo sobre Terra em Transe, de Glauber Rocha (In: Discurso. São Paulo: FFLCH/USP, Ano VII, n°7, 1976, p. 169-181 ).

[11] No texto teórico A Compra do Latão, B. Brecht afirma que “o realismo legítimo tem por missão permitir que se reconheça a realidade do teatro” (La Compra de Bronce, p. 123).

[12] Segundo Tayebi, ele comprara uma flor para oferecer à transeunte por quem se apaixonara. Neste dia, sofreu o atentado e nunca mais viu a moça. Durante o processo de filmagem, compreende que a tal moça era cúmplice de Makhmalbaf. Revoltado, pede a seu intérprete que, nas filmagens, atire na moça quando ela vier lhe perguntar as horas – maneira de compensar a frustração da descoberta. O intérprete se rebela, oferecendo a flor à moça e dando um final pacifista à história reencenada, bem diferente do original. Se não endossa um projeto de revolução social à Brecht, Makhmalbaf/diretor parece endossar, sim, a “historicidade fundamental de nossa existência. O mundo (afirma Brecht) não cessa de se transformar e de nos transformar. E é precisamente por ser assim transformável que o mundo pode ser representando para os espectadores de hoje”. (Dort, Ibidem,p. 20)

[13] A afirmação da historicidade, a humanização das relações e a desalienação das pessoas, na esfera cotidiana, me parecem os grandes alvos do diretor iraniano. Lembremos do saldo nada pacífico da revolução islâmica: 500 mil exilados, 10 mil pessoas executadas, milhares de mortos na posterior rebelião dos curdos e cerca de 1 milhão de vítimas na Guerra Irã-Iraque, cuja origem é a revolução islâmica, e que se estendeu por oito anos. Se o estado teocrático afirma a inelutabilidade do Islã, Makhmalbaf afirma a inelutabilidade da história. Para Makhmalbaf, quando jovem, salvar a humanidade era pegar em armas. Para o “jovem Makhmalbaf”, seu intérprete no presente, é ser “pai”  de todos os homens e “plantar flores na África”.

[14] Ao realizar um filme “histórico” totalmente anti-convecional, Mahmalbaf se aproxima de um dos atributos da arte antiilusionista, conforme Robert Stam: “(…) a dialética de arte e realidade tem um aspecto de crítica social aguda. De fato, a crítica de um gênero ou de um estilo transmuta-se facilmente na crítica das convenções sociais a eles inerentes” (Ibidem, p. 29).

[15] Bertolt Brecht, A Compra do Latão .

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